quinta-feira, maio 05, 2011

"Urdir"* (ou um gesto airoso de Miguel Esteves Cardoso a propósito das cerejas de Resende)

Um almoço bom é um almoço urdido. Urdir dá gosto conjugar e significa "preparar ardilosamente". Como se urde um almoço? Será preciso ser-se urdimaças para consegui-lo?
Anteontem, urdi um bom almoço para a Maria João. Ela chegava tarde de Lisboa, à espera de almoçar à pressa em casa. Mas eu, já há muito instalado num restaurante de praia, provoquei-a a vir ter comigo; que não se arrependeria. Rimo-nos muito ao telemóvel: "Mas o que é que tu me urdiste, coração meu?" "Apenas urdi o que achei mereceres, alma minha". Na verdade, para o almoço ser bem urdido, não basta a atmosfera, sempre apetitosa, de intriga e de mentiroso silêncio.
Havia, no excelso restaurante, onde todos e tudo são tão bons que me escuso de repetir o sagrado nome, uma garoupa boa, a pedir para ser cozida. Mas não chegava.
Às onze da manhã comecei a caçar cúmplices: dois tomates gigantes e prematuros, daqueles que nascem uns dentro dos outros, que cheiravam ao Verão que aí vem. Dois pimentos encarnados e verdes-laranja que, pelo sabor, devem vir de estufas muito sabidas. Finalmente, umas cerejas, maravilhosas, de Resende, concelho de Viseu que eu muito estúpida, vergonhosa e ignorantemente desconsiderei como freguesia do Fundão. ("bold" da responsabilidade do autor deste blogue)
Somei depois uma braçada de segurelha e outra de poejo, para temperar a salada de tomate. Quando a amada chegou, estava tudo urdido e mais do que perfeito.
Almoçou bem; eu assisti. Urdimos um banquete repetido que nos reuniu à luz mais uma vez.
*Título e crónica de Miguel Esteves Cardoso, publicada no Público de hoje, dia 5 de Maio de 2011
Nota: Face à nobreza deste gesto e a esta saída bem urdida,  o MEC está perdoado.