terça-feira, maio 03, 2011

"As cerejas bem-vindas"* (Ou a ignorância de Miguel Esteves Cardoso sobre Resende)

No sábado comemos as primeiras cerejas do ano. Eram da freguesia de Alcongosta, cujo nome dá quase tanto gosto pronunciar como comer as cerejas que lá magicam.
Eram verdes, verdinhas e eram caras: dez euros o quilo. Comprámos, pacatamente, meio quilo, mas a despesa rendeu-nos 50 cerejas gordas e luzidias, a cinco cêntimos cada bochecha, já que cada cereja tem duas, que até às vezes são marcadas, como as bochechas dos rabos.
Nunca tínhamos comido cerejas tão cedo. A senhora a quem comprámos avisou-nos que eram "um bocadinho amargas" e que mais valia esperarmos uns dias, até chegarem as cerejas de Resende, essoutra distinta freguesia do Fundão, que viriam mais doces e mais baratas. (sublinhado autor deste blogue)
"Pode provar", consentiu, como quem diz "quem te avisa, teu amigo é". Desafiei-a e puxei de uma delas. Que ácida e carnuda luxúria experimentei! Voltei ao século XIX - transportei-me. Os caroços eram verdes e as cerejas, cantou a Maria João, sabiam a flor - à sakura japonesa - e a chuva. O sol e o açúcar já estavam apaixonados e já eram noivos, mas ainda não se tinham casado com cereja nenhuma. Que boas eram estas cerejas ainda solteiras mas já prometidas, boas de pleno direito, perfeitas para quem gosta mais de presenças do que de esperanças.
Não são as cerejas doces, baratas, abundantes e deliciosas que aí vêm. São estas ácidas, caras, raras e deliciosas que aí andam agora que estão prestes a desaparecer. Ambas são, desigualmente, bem-vindas.
*Cónica de Miguel Esteves Cardoso, publicada no jornal Público,  de 2 de Maio de 2011
Nota: Proponho que o sr. Presidente da Cãmara convide esta ilustre criatura para estar presente no próximo festival da cereja, para um banho de imersão sobre Resende.