quarta-feira, dezembro 20, 2006

Em conversa com "O Diabo", Anselmo Borges põe tudo em pratos limpos

Numa notável entrevista, concedida ao semanário "O Diabo", que a seguir se reproduz, Anselmo Borges pronuncia-se sobre o Natal e alguns temas candentes envolvendo a Igreja e o Mundo.
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O Natal transformou-se numa festa pagã sem qualquer significado religioso?

Não seria tão radical. Ainda há algumas referências de tipo religioso. Julgo que a maioria das pessoas ainda sabe que o Natal está relacionado com o nascimento de Cristo e há mais solidariedade nesta época.

Mas o consumismo desenfreado e a indiferença ética não têm desvirtuado o sentido da celebração do Natal?

Aí é que reside o problema. De facto, há uma concentração quase total nos presentes com espavento e no consumo. Desgraçadamente, não é só no Natal, pois trata-se de uma espécie de estado de espírito: o importante é ter e consumir. As novas “catedrais” são os hipermercados e as “capelas” são as lojas de luxo. Ora, Jesus foi tremendamente exigente em relação à riqueza não solidária: “Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro”.

Então, as pessoas não reflectem sobre o verdadeiro significado desta data...

Pelo menos, reflectem pouco. O Natal diz que Deus se manifestou em corpo e que, portanto, o ser humano deve ser respeitado em corpo. Ora, o corpo continua muito menosprezado: há um culto do corpo que revela algum mal-estar em relação a ele. Depois, o Natal mostra que mais importante do que o ter é o ser. Ora, como já disse, há uma concentração no ter e no consumismo. O Natal significa humildade e discrição – Deus manifestou-se de modo discreto numa manjedoura. Ora, nós hoje vivemos obcecados pelo aparecer e pela competição.

Quais são os seus maiores lamentos e preocupações nesta época?

Não sou muito de lamentações. Não começo, pois, por lamentos, porque, seja como for, quando a gente compara o nosso tempo com aqueles tempos em que se pensa que o cristianismo estava mais presente, temos de constatar que hoje há mais justiça social, já não há escravatura legal, as mulheres vão acedendo à igualdade de direitos.
Mas realmente esta é uma época em que grassa o egoísmo. A mim o que mais me preocupa é a banalidade rasante e a obturação das grandes perguntas pelo Humano e pelo sentido da existência.

O alheamento das pessoas em relação à Igreja acaba por representar um desafio para a instituição?

Devia representar. Mas com esta salvaguarda: o decisivo não é a instituição, mas as pessoas. A Igreja não existe para si, mas para servir os serres humanos. Deus não se revelou para que lhe prestemos culto, mas para que nos amemos e nos interessemos uns pelos outros e nos ajudemos a realizar a humanidade de todos, a começar pelos mais abandonados.

Nesta área, as igrejas e os seus chefes religiosos estão a fazer tudo o que podem para combater esta indiferença? Ou podem reconhecer alguma culpa neste afastamento?

Julgo que podem e devem. Fundamentalmente, porque, em vez de se anunciar o Evangelho, notícia boa e felicitante, prega-se muitas vezes um “Disangelho”, como dizia Nietzsche, isto é, um Deus que é uma má notícia. Há falta de abertura às questões – por exemplo, o preservativo, para evitar um contágio ou uma gravidez não desejada, há muito que não deveria constituir problema.

Quais são os maiores desafios que enfrenta o cristianismo nos dias de hoje para poder alterar os valores próprios desta sociedade consumista?

Os maiores desafios do cristianismo são os desafios lançados à humanidade em geral. Para enfrentá-los, os cristãos precisam, em primeiro lugar, de dar testemunho de uma humanidade boa, justa e feliz. Isto significa que as comunidades cristãs devem assentar em três pilares: fé reflectida, caridade-justiça, celebrações litúrgicas belas e iluminantes.

E a Igreja católica?

Será necessário, contra um centralismo teocrático, abrir-se à participação de todos; face a um clero envelhecido e muitas vezes desiludido, inventar outro tipo de líderes das comunidades; as mulheres devem ocupar o seu lugar em igualdade com os homens. Mas, claro, sem fé esclarecida, sem amor e sem mística, sem experiência do Deus vivo, não há cristianismo.

No seu texto para o Dia da paz, Bento XVI vai alertar para os dramas da Humanidade que ameaçam a paz e que colocam em risco o futuro das novas gerações. Na sua opinião, quais são esses dramas?

A guerra, o terrorismo, a multiplicação de países com armamento nuclear, o não respeito pelos direitos humanos, a incapacidade de diálogo entre culturas e religiões, o capitalismo neoliberal, o comércio de armas, a droga, a prostituição, a poluição, o perigo do mau uso das biotecnologias e da Internet, o fosso crescente entre os muito ricos e os muito pobres.

O que pensa da recomendação da Comissão Nacional de Eleições (CNE) para que “todas s manifestações gráficas e escritas que possam influenciar a forma como se vota”, nomeadamente símbolos religiosos, sejam retirados das assembleias de voto no dia 11 de Fevereiro?

Compreendo e aceito.

A Igreja deve participar activamente na campanha pelo “não” à despenalização do aborto ou deve abster-se?

Se por Igreja entender a chamada Igreja hierárquica, acho que ela deve anunciar claramente a sua doutrina sobre o assunto. Mas não estou a ver os bispos e os padres em manifestações de rua. A Igreja dirige-se fundamentalmente às consciências. Se por Igreja entender os fiéis católicos, digo-lhe: deverão agir de acordo com as suas convicções.

A maioria das mulheres portuguesas pretende votar a favor da despenalização do aborto no referendo de 11 de Fevereiro, de acordo com um estudo realizado pela Associação para o planeamento da Família (APF). Se o sim vencer, acha que vão acabar os abortos clandestinos?

Ninguém sabe se a maioria das mulheres vai votar a favor. Mas, se o sim vencer, não creio que os abortos clandestinos acabem, e as razões são várias: sentimento de culpa, algum estigma social...

Os católicos não serão recriminados se votarem ou se estiverem contra a doutrina da Igreja?

O voto é secreto e é doutrina comum da Igreja que a suprema instância moral é a consciência informada e bem formada.

Um mundo mais justo e uma sociedade sem pobreza e miséria é provavelmente um desejo unânime. Que balanço faz das políticas implementadas por este Governo concretamente ao nível da saúde, da educação, da solidariedade social?

Espero que não espere de mim um Programa de Governo. Eu não tenho a solução para tantos e gigantescos problemas, concretamente no quadro da globalização. Começo por dizer-lhe que julgo que a política é uma actividade nobre e tenho consideração pelos políticos que se dedicam à causa pública e ao bem comum. Como é evidente, não estou, com isto, a canonizar todos os políticos.
Indo à sua pergunta, penso que este Governo tem de modo geral tentado tomar algumas medidas urgentes e necessárias. Mas penso também que algumas poderiam ser mais bem negociadas: refiro-me nomeadamente ao nível da educação, onde é necessário um clima menos tenso.

Acha que este Governo tem contribuído para a justiça social? Tem havido preocupação com os mais desfavorecidos?

Aí é que está a questão. Penso que era Bismarck que dizia que com as Bem-aventuranças do Evangelho não conseguia governar a Prússia. Eu percebo isso, porque a política é a arte do possível. A política tem de harmonizar a eficácia e a justiça, e essa harmonização é muito complexa. Mas é evidente que é no sentido dessa harmonização que é preciso caminhar. As estatísticas dizem que Portugal é o país da União Europeia onde as assimetrias sociais mais se têm acentuado. É uma vergonha para nós todos enquanto cidadãos que haja dois milhões de pobres e duzentas mil pessoas com fome. Embora veja que há algumas pequenas tentativas de preocupação com os mais desfavorecidos, acho que temos de exigir eficácia no plano
económico-financeiro, mas sem abandonar os pobres e os velhos à miséria, concretamente no domínio da saúde e da segurança social.